Meduse

Meduse: um corpo mítico que atravessa gêneros
Artista: Lydia Guerreiro

Desde a Antiguidade, a figura da Medusa tem sido cristalizada como o símbolo da mulher-monstro: aquela que, punida por existir e transformada em ameaça, carrega no olhar o poder de petrificar. No entanto, a mitologia — assim como a arte — está sempre aberta a deslocamentos, revisões e expansões. Meduse, escultura em argila, nasce justamente desse espaço de reinvenção.

Ao invés de fixar a criatura no campo do feminino demonizado ou do masculino heroico, Meduse opera em uma zona intermediária, onde o gênero se dissolve e dá lugar ao arquétipo. A figura não é “ela” nem “ele”, mas uma presença que reúne traços fluidos: o rosto alongado, a boca entreaberta em expressão de espanto ou revelação, e os elementos serpentiformes que emergem da cabeça como pensamentos em movimento.

Essa escolha amplia o imaginário da lenda. A Medusa clássica é frequentemente lida como metáfora da punição do feminino. Meduse, por sua vez, desloca o centro dessa narrativa: não é vítima, nem vilão; torna-se símbolo de transformação. Ao não se restringir a um gênero específico, a figura expande a potência do mito, permitindo que diferentes corpos e identidades se reconheçam na zona liminar que ela ocupa.

A textura da argila, preservada no acabamento, reforça essa ideia de transição. O modelado visível lembra que o mito, assim como a matéria, está sempre em processo — nunca totalmente concluído, nunca totalmente definido. As serpentes, mais próximas de formas orgânicas do que de criaturas ameaçadoras, sugerem um movimento interno, quase psíquico, como se Meduse representasse um estado de passagem entre um ser e outro.

Ao revisitar a lenda sob essa perspectiva, a obra propõe uma leitura contemporânea: a de que o monstruoso pode ser ressignificado, e que identidades tradicionalmente fixadas podem, na verdade, ser vastas, mutáveis e múltiplas. Meduse não petrifica; ela convoca. Convida quem observa a questionar as fronteiras rígidas entre corpo, mito e gênero — e a perceber que, na arte, esses limites são sempre matéria viva.







 

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